O balcão das lamentações

Publicado no Jornal Local em 09/02/2022.

O vendedor de sapatos parecia não acreditar no que estava vivendo. Aquele senhor queria mesmo comprar os sapatos de número 36 para calçar seus pés de tamanho 40 ou 41 e insistia nisso. Somente depois de muita discussão, o comerciante conseguiu sua explicação: “Meu sócio me faliu, minha esposa me traiu, meus filhos me abandonaram, perdi tudo o que eu tinha. O único prazer que tenho tido nos meus dias atuais é do alívio ao tirar os sapatos quando chego em casa”.

O conto ouvido em uma mesa de lanchonete, há muitos anos atrás, retrata o comportamento de Júlio, um homem de meia idade que tocava uma loja de miudezas na cidade onde nascera. Para qualquer abordagem que fazíamos às possibilidades de crescimento de seu comércio, a resposta vinha cunhada do âmbito das lamentações. Júlio parecia precisar ser reconhecido pelas dificuldades que passava à frente de seu negócio e, para cada fase nesse papel, tinha uma esperança diferente para sua salvação. Da troca do governo municipal ao prêmio da loteria, passando pela mudança para uma cidade “onde os clientes valham à pena”, algum alívio estava sempre brilhando adiante dos seus sofridos dias de empreendedor.

Precisar de holofotes ou aceitação e atuar pela expectativa do alívio podem parecer atitudes infantis – e há boa chance de elas virem de nossas crianças interiores, mas são estímulos de muitos empreendedores adultos com os quais me sentei em consultoria por aí. Apesar de ambas terem o mesmo sintoma aparente: insistentes reclamações pelas circunstâncias, com a primeira delas, agem os que mais esperam o olhar consolador e, com a segunda, funcionam os que têm maior expectativa na sua salvação. Quanto mais chora a criança, maior sua chance para a sensação do colo. Quanto mais significado se dá à necessidade, mais sentido ganha a expectativa pelo alívio. Ao se alimentar a impossibilidade de solução para problemas financeiros, por exemplo, pode-se colocar a esperança de ganhar o prêmio milionário como a razão que justifique para si mesmo a falta de esforços.

Ao se alimentar a impossibilidade de solução para problemas financeiros, por exemplo, pode-se colocar a esperança de ganhar o prêmio milionário como a razão que justifique para si mesmo a falta de esforços.

Não há nada de errado em funcionar a partir desses estímulos. Se não por esses, nas vísceras, seriam descobertos muitos outros do mesmo nível no conjunto dos que nos impulsionam aos sucessos. Mas a força que Júlio punha nas reclamações levava também seu foco e sua energia apenas para necessidades e a garimpar pelas mais impactantes. Como que em busca da droga que aliviasse uma angústia, o empreendedor perdia um bom tempo ouvindo ou pesquisando por notícias que confirmassem sua razão em manter-se nas lamúrias – um esforço enorme na manutenção de sua fonte dos prazeres. Os clientes que lhe davam ouvidos funcionavam como uma espécie de conselheiros de ditador, a quem não cabe opiniões que não confirmem a razão do líder.

Júlio desconsiderava as possibilidades de solução ou mudança para seu negócio como que, se assim fizesse, pudesse se descobrir com potência suficiente para largar o vício. Então, as chances para crescimento nunca recebiam atenção e ações, apenas expectativas: “Quando esse ou aquele fato ocorrer, eu mudo”.

Para um empreendimento liderado por quem não se vê em vícios, como os atribuídos ao personagem Júlio, tenho visto a concorrência como o único soro da cura. As oportunidades desconsideradas por ele catalisam-se como diferenciais apresentados pelos concorrentes ao mesmo mercado. Em pouco tempo, quando bem trabalhados, esses destaques se aculturam e os clientes passam a exigi-los em lugar das lamúrias.

Sobre Álvaro de Carvalho Neto

Educador coorporativo desde 1996, tem graduação em Administração de Empresas e especialidades em Análise de Sistemas, Marketing, Liderança, OS&M, Gestão de Projetos, Coordenação de Grupos, Coaching e Psicodrama Sócio-educativo.

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